sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O sino da minha vila

O sino da minha vila toca por diversos motivos.
A passagem do tempo (a cada 15 minutos), a entrada das missas (e julgo que saída também, já não sei bem porque deixei de frequentar), os casamentos, os funerais. Julgo que é só nesta base.

Já escrevi aqui que o ritual cristão dos funerais (e apesar de não conhecer aprofundadamente muitos outros) é algo medonho para mim. É uma aura que se entranha e que fica, que entristece, que magoa até. Julgo que deverá ser assim para a maioria, senão para todas as pessoas. Quando se trata de familiares, a "coisa" é ainda mais pesada. Se se trata de gente nova, tanto pior; se é gente mais velha, talvez a aceitação seja mais "pacífica", mas não menos triste.

Por estas bandas, quando se inicia um funeral (sendo que a capela onde os corpos ficam em câmara ardente - um dos elementos medonhos de que falo acima - é basicamente frente a frente com a igreja onde se realiza a missa), o sino toca a repique, outro dos tais elementos medonhos). E volta a tocar do mesmo modo quando termina a missa e quando se inicia o breve cortejo até à morada final.

O sino toca também em sinal de "aviso" de que alguém morreu. Uns segundos de som repetidos três vezes, no caso de ter sido homem, ou duas se, tiver sido mulher.

Esse sinal de aviso aconteceu há instantes, quando vinha a subir, de regresso ao trabalho. Foi alguém da família, homem, velhote. Já tinha tido conhecimento ontem. Não tinha proximidade máxima como ele, o meu tio Chico. Não era meu tio de sangue, tornou-se pelo casamento. Mas lembro desde sempre de acompanhar as visitas que o meu pai lhe fazia frequentemente. Antes e depois da mulher falecer. Sempre o vi de um lado para o outro, rijo que nem um pêro. E (muito) sofrido por dentro. Não sei se morreu feliz. Um AVC e uma cama de hospital não devem fazer ninguém feliz...Mas tenho a certeza absoluta de que foi felicidade a que encontrou na recta final de vida, junto de uma nova companheira.

Viu dois filhos emigrados (um entretanto, já regressado de terras de Vera Cruz) e outro - o que permaneceu por cá - sofrer um acidente gravíssimo acidente rodoviário na juventude, que lhe deixou - ao filho - sequelas físicas para o resto da vida. E psicológicas, em ambos.

Viu a esposa falecer há uns anos. E lembro-me muito bem da maneira como se agarrou ao caixão na hora da partida. Um gesto emotivo e que lhe saiu assim, sem pensar, directamente do coração. Lembro-me várias vezes desse momento e tenho a certeza de ter testemunhado a prova mais dura, e ao mesmo tempo mais verdadeira, do que é amar alguém.

Uns anos depois viu morrer o filho de que falei acima, com as várias sequelas agravadas, inclusivamente pela amputação de um dos membros inferiores.

Amanhã de manhã será a vez dele descansar, em paz, acima destes seus dois parentes, aqueles por quem sempre foi sofrendo e vivendo.

Quando vinha a subir a pé, há instantes, ao ouvir o sino, vislumbrei em câmara acelerada uma existência da qual só conheço pequenas partes e só posso sentir e ter um respeito imenso por mais esta vida que se apagou.

Há uns tempos, cruzava-me com ele frequentemente na rua. Fiz sempre questão de lhe apertar a mão e sentámo-nos algumas vezes a tomar um café. Numa das vezes que nos cruzámos, eu tinha no bolso uns quantos fofinhos rebuçados do Dr . Bayard. Tirei um do bolso e perguntei se queria algum. Ele aceitou com agrado e recordou que quando conduzia aquilo era "o meu tabaco". Tenho a certeza de que lhe trouxe uma pequena alegria com aquele pequeno gesto de partilha.

A vida é assim, dúbia. Com esta mistura de tristezas e alegrias, que temos de ir sabendo contrabalançar, sob pena de vivermos todos tristes como a noite. Hoje e amanhã julgo que penderei para este lado mais sombrio. Mas depois passará. Adeus tio Chico.

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