segunda-feira, 22 de julho de 2013

@ blogosfera

Da série "textos encontrados ao acaso, pelo meio de tarefas do trabalho":

Há precisamente um ano morreu o meu pai. Escrevi este texto na altura para ultrapassar a imagem que me ficou gravada dos últimos momentos. Há dias mais complicados que outros, este é um deles. Volto ao texto como forma de sentido, a haver um 
Quando tinha sete anos descobri a morte. Percebi que havia uma espécie de parede inultrapassável e um tempo eterno sem nós. O céu e as nuvens que até ali me tinham parecido coloridos esmagavam-me. Até o silêncio se tinha tornado ruidoso. O meu pai pegou em mim e explicou-me nessa noite as vantagens de se morrer e que nós tínhamos o nosso tempo de eternidade. Na nossa vida havia um pedaço de infinito em que todos os segundos contavam. Era a morte que nos dava a urgência e a necessidade de nos superarmos. A vida podia enganar o tempo, bastava dar-lhe sentido. Ironizava comigo que se fosse possível congelar as pessoas, para lhes prolongar a vida quando a ciência estivesse mais desenvolvida, estaríamos a obrigar as pessoas do futuro a descongelar muita porcaria. Poucos meses depois, o meu pai esteve à beira da morte. Ia, com Lino de Carvalho ao volante, para um comício, vinham de várias directas e adormeceram. Esteve 15 dias em coma a lutar para viver. Sobreviveu com mazelas irrecuperáveis. Nunca aceitou as suas limitações. Tentou recuperar pela escrita e pelo trabalho aquilo que tinha perdido em capacidade.
O meu pai queixava-se de o meu avô ter morrido jovem e de nunca lhe ter dito o suficiente. O meu avô nunca o tinha visto jovem, nunca o tinha visto homem. A última imagem que tinha dele foi quando lhe tinham pedido que o beijasse morto e o meu pai, adolescente, só tinha conseguido chorar.
Tive a sorte de conhecer o meu pai. Um jovem de cabelo branco, preso pela primeira vez aos 17 anos, para quem as causas e as paixões eram a única razão para respirar. Corria atrás do tempo perdido em quatro anos nas celas de Peniche. Dizia-me que a minha geração tinha muito tempo de avanço e que nos cabia aproveitá-lo. Havia uma urgência ditada pela entrega política e pela necessidade de viver em permanente estado de paixão.
Quando a sombra frágil que está ligada à máquina falhar terá ficado nos seus a urgência em que na vida curta tudo vale a pena. As paixões como as revoluções são tentativas de rompermos as leis que nos condenam à mediocridade e à servidão. No fim estaremos todos mortos, o que conta é termos sido capazes de um gesto livre.
Cresci a escutar a história de uma revolta perdida. íamos mudando de país em país: Checoslováquia, Argélia, Suíça, França, e chegámos a Portugal como clandestinos. À noite o meu pai não se cansava de me contar, como se fosse um conto de fadas, a história da Revolta dos Anjos. Dizia-me que depois de muitos abusos e opressão, os anjos tinham decidido revoltar-se. Na véspera do grande dia, o líder dos revolucionários sonhou que triunfava e ocupava o trono do tirano. O pesadelo começava, pouco tempo depois, com a canga das coisas inevitáveis, os revoltados tornavam-se senhores em vez dos senhores que tinham jurado derrubar. Depois de acordar, Lúcifer teria desistido da insurreição. A história tinha uma moral óbvia que nos impelia à prudência. Contudo, teimávamos em não lhe obedecer, apesar de sabermos que a maior parte dos esforços são vãos.
Transformar o mundo e mudar de vida, como exigiam Marx e Rimbaud, parece muita vezes sem sentido. Mas há algum sentido em estar parado? Nos seus Provérbios do Inferno, William Blake garantia: “O que deseja e não age gera pestilência.”
 A guerra dos anjos revoltados contra o poder de Deus é uma guerra perdida. Mas é um grito contra a adversidade.
 Como escrevia Giambattista de Marino, no seu Satã, “[…] e mesmo se tombarmos vencidos, ter tentado tão alto feito é ainda um triunfo…”
 Da mesma forma que a nossa vida é um grito que ecoa no meio da morte.

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