quinta-feira, 5 de novembro de 2015

"Portas"


Sem portas não havia
a palavra intimidade
nem a palavra privacidade
nem a palavra casa.
Casas também não havia.
Quem é que as queria
se não se podia entrar nem sair delas?
 Também não havia janelas, telhados, varandas.
Talvez não houvesse ruas
E, sendo assim, também não havia cidades.
O mundo, que é só um, ficaria parado.
Não se podia entrar em lado nenhum,
Não se podia sair de nenhum lado.
Sem portas nada se passava,
nada acontecia.
Também não havia segredos
porque não havia onde os guardar.
E não nasciam nem morriam pessoas
Porque para nascer e para morrer
Também era preciso passar uma porta.
Ninguém se lembra
que a porta de casa tem duas caras:
a de dentro e a de fora.
Se uma ri, a outra chora.
A de dentro está aconchegada,
sente o calor da lareira e das pessoas,
sabe o que há para o jantar,
cheira e vê as coisas boas.
A de fora dorme à chuva,
gela de frio e de tristeza.
Recebe os golpes do vento
 E o chichi dos cães vadio,
As pancadas do carteiro,
Que bate sempre três vezes,
E a perícia dos ladrões,
Que não batem nenhuma.
A cara de dentro
ouve o choro dos bebés,
o silêncio dos mortos,
o sono dos gatos.
A cara de fora
ouve as conversas dos vizinhos,
que lhe entram por uma fechadura
e lhe saem por outra,
e a lengalenga dos bêbados
que voltam para casa de madrugada
com um fardo de amargura
e os bolsos cheios de nada
A cara de dentro conhece as pessoas por dentro,
a de fora só as conhece de passagem
e mesmo assim abre-se para as deixar passar.
Como forma de agradecimento
batem-lhe a qualquer momento.
Por isso é que ela às vezes se zanga
e fecha as pessoas fora de casa.
Agora um segredo: ficam a saber
que as duas caras da porta não são muito dadas,
o que não admira: não se podem ver.
Estão sempre de costas voltadas.
As duas são a porta da casa
mas a de fora vive na rua
e a de dentro é quem lá mora.
Ninguém se lembra que a porta
tem duas caras.
Se a de dentro ri, chora a de fora.
Álvaro Magalhães

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