sexta-feira, 5 de março de 2010

Ó pastorinha de vitral e bruma

Enquanto aguardo que as peças que compus fiquem disponíveis, de modo a poder terminar a semana de trabalho (:///), oiço a deliciosa "Linda Rosa" da maria Gadú "nesta sala branca" e anoto alguns trechos do último texto de António Lobo Antunes na "Visão". Alguns dos melhores que li até hoje... (Quem puder, leia na totalidade)

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"(...) mas alguma parte minha deve ter saudades desse tempo porque sinto a falta de qualquer coisa que não sei exprimir, qualquer coisa leve e doce, um contacto, palavras, cheiros, uma espécie de ninho, de que fosse o ovo feliz, um ovozito de nada, pintalgado, minúsculo.

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Ó pastorinha de vitral e bruma
Que sobre mim a tua graça entornes

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e, ao repetir esses versos, a minha mãe iluminava-se, de tão feliz. Nunca o disse mas estou seguro de haver sido o que de mais bonito lhe aconteceu na vida (o meu pai nem sequer tocava ao entrar em casa) e que, toda a sua existência, este episódio a acompanhou. e acompanha ainda, como uma lâmpada secreta. De quando em quando, recito-lhe poemas de António Sardinha.

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e ela, de pálpebras descidas, a sorrir. Este episódio, quando aminha mãe era pouco mais que uma criança, ficou-lhe para sempre na alma, e o tal estudante tornou-se como que o halo de um ideal que não chegou a viver. Trazia uma assinatura por baixo, contava ela, mas o teu avô apagou-a, e a lembrança da assinatura apagada emsombrecia-a. A voz tornava-se-lhe mais lenta

-Nunca soube quem era

e depois vieram muitos filhos, desgostos, o casamento com um homem difícil, meia dúzia de coisas boas, espero, e as palavras de António Sardinha a mostrarem-lhe o que devia existir e não viveu nunca

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um estudante que a ajudou a sonhar anos e anos

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Deixa cair dos lábios de medronho
A perfumada voz do nosso sonho
Mas tão baixinho que só eu entenda

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Como seria ele, não é mãe?

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Vejo-te assim, ó asa de ansorinha,
Com ar de infanta que perdeu a aia
Envolta nessa luz que te acarinha
Na luz que desfalece e que desmaia.

Sabe , não se preocupe, continua a ser a pastorinha de vitral e bruma, a palpar o caminho quase cega, ou numa cadeira da sua saleta, à espera de nada. Ou, então, na esperança oculta que o estudante que comprou o retrato na loja, lhe chame, ao ouvido, pastorinha de vitral e bruma e os seus olhos tornem a ver, os membros difíceis se desatem, não precise de remédios nem de médicos para nada e, envolta numa luz que acarinha, se dirija não sei para que sítio, onde um júbilo sem manchas a espera. De uma das últimas vezes que perguntei

-Como se sente?

uma espera difícil

-A desfazer-me aos bocados

e, palavra de honra, tive ganas de ser eu o estudante (...) nesse caso, percebe, podia pegar-lhe na mão, nessa mão que é minha entornava a sua graça sobre mim e partíamos os dois

...

Claro que sou apenas seu filho: mas talvez que se lhe doer a boca de me dar beijos valha a pena. Guardo alguns no bolso pra o caso do rapaz que comprou a fotografia aparecer. Então entrego-lhos

-A minha mãe manda isto

e aposto que os seus olhos, por um momento que seja, o conseguirão ver, enquanto eu fico, um pouco à parte, tão comovido com a sua beleza, a repetir não para si, mas para mim

Se eu te pintasse posta na tardinha
Pintava-te num fundo cor de olaia


e nunca mais ninguém a torna triste."


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P.S.: Daqui a, espero, não muitos minutos aguarda-me um banhinho quente, uma sopinha que a minha mãe fez e o DVD do "O Feiticeiro de Oz" (Quero ver a magia dos sapatos vermelhos que marcam a Rita Redshoes ;)). Depois, um sábado cheio, mas um domingo calmo, tanks God :)

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